Tuesday, October 21, 2003

"(...)Milhões de homens viviam em uma imensa construção sem porta nem janela. Inúmeras lâmpadas de óleo competiam com sua escassa luz contra as trevas que reinavam permanentemente. Como era de costume desde a mais remota antigüidade, a sua manutenção cabia aos pobres, e por isso o preço do óleo refletia fielmente a alternância entre a revolta e a calmaria. Um dia eclodiu uma insurreição geral, a mais violenta que esse povo já conhecera. os seus líderes exigiam uma justa repartição das despesas de iluminação. Um grande número de revolucionários reivindicava a gratuidade daquilo a que chamavam um serviço de utilidade pública. Alguns extremistas chegavam ao ponto de exigir a própria destruição do edifício, que consideravam insalubre e impróprio para a habitação humana. Como de costume, os mais razoáveis se encontraram desarmados perante a brutalidade dos combates. No decorrer de um encontro particularmente violento com as forças da ordem, uma bala de canhão mal direcionada abriu um buraco na muralha externa, por onde fluiu a luz do dia.
Passado o primeiro momento de estupor, esse afluxo de luz foi saudado por gritos de vitória. Era essa a solução: agora bastava abrir outros buracos. As lâmpadas foram postas de lado ou colocadas em museus, e o poder coube aos abridores de janelas. Os partidários de uma destruição radical foram esquecidos, e até mesmo a sua discreta eliminação, pelo que parece, passou quase desapercebida. (As discussões incidiam sobre o número e localização das janelas.) Depois, um século ou dois mais tarde, os seus nomes foram lembrados quando o povo, esse eterno descontente, acostumado a ver varandas envidraçadas começou a levantar extravagantes questões:"arrastar os dias numa estufa climatizada será viver?", perguntavam. (...)"

Raoul Vaneigem " A Arte de Viver para as Novas Gerações".

Saturday, October 04, 2003

"Todos, mais ou menos confusamente, sentem a necessidade de nascer. Mas há soluções que enganam. Certamente podem-se animar os homens vestindo os de uniformes. Eles logo cantarão seus cantos de guerra e repartirão o pão entre si, como companheiros. Terão achado o que procuravam, o gosto do universal. Mas vão morrer desse pão que lhes é dado.
Podem-se desenterrar os ídolos de madeira e ressuscitar os velhos mitos que, bem ou mal, já mostraram seu valor. Podem-se ressuscitar as místicas do Império Romano ou do Pan-germanismo. Podem-se embriagar os alemães da embriaguez de ser alemães e patrícios de Beethoven. Pode-se embriagar com isso até o carvoeiro. É, certamente, mais fácil que tirar do carvoeiro um Beethoven.
Mais tais ídolos são ídolos carnívoros. Quem morre pelo progresso da Ciência ou para descobrir a cura de uma doença serve a vida ao mesmo tempo que morre. É talvez belo morrer pela expansão de um território, mas a guerra de hoje destrói o que pretende favorecer. Hoje não se trata mais de sacrificar um pouco de sangue para vivificar toda uma raça. Uma guerra, desde que é feita com o avião e a iperite, é apenas uma cirurgia sangrenta. Cada um se coloca ao abrigo de uma muralha de cimento; cada um, não tendo nada melhor a fazer, lança, noite após noite, esquadrilhas que torpedeiam o outro em suas entranhas, fazem saltar pelos ares seus centros vitais, paralisam sua produção e suas trocas. A vitória é de quem apodrece por último. E os dois adversários apodrecem juntos."

Saint-Exupéry, em Terra dos Homens.